segunda-feira, 23 de março de 2009

Memórias - Cap. 2

Durante o Verão, o meu pai levou-me para a nossa casa de campo. Era bonita e agradável, gostava bastante de passar as férias naquele local. Foi nesse mesmo Verão que comecei a escrever o meu primeiro diário. No início foram apenas algumas frases, uns pensamentos que me ocorreram e decidi guardá-los como um auxiliar de memória. Ainda me lembro do seu aspecto: um caderno pequeno, de capa azul ciano e uma fita cor-de-rosa com cheiro a rosas. Escolhia uma caneta e apenas com ela escrevia. Agora que penso nestas recordações, uma profunda nostalgia começa a surgir. Como eu era uma criança enganada! Protegida pelo seu próprio escudo, indefesa aos seus próprios ataques.
Foi também nesse Verão que uma mulher chegou à nossa casa. O nome dela era Ema e tinha o cabelo cor de fogo. Chegou com três malas e um sorriso bem arquitectado. O meu pai recebeu-a como bom anfitrião que era, mas sempre com uma intimidade que nunca reconheci com os outros convidados. Olhou-me bem no fundo dos olhos e eu senti a respiração a esvair-se. Quem era aquela mulher? Por que razão o meu pai não me falou dela antes da sua chegada? Essas perguntas ficaram apenas a vaguear na minha mente, não consegui arranjar coragem para confrontá-lo.
« - Deve estar curiosa para saber quem ela é» - disse Rájia, enquanto me escovava o cabelo.
« - Sim».
« - É uma mulher muito rica e muito poderosa. A maneira como chegou, cheia de luxos e privilégios, como é tratada em casa da sua mãe... » - calou-se de repente.
Engoli a seco, talvez por que a verdade é cruel e difícil de aceitar. Aquela casa foi um presente de casamento que os meus avós paternos deram à minha mãe. Ela gostava daquele local tanto ou mais que eu, conseguia observá-lo pelo brilho dos seus olhos. Mas agora ela já não estava presente, a sua alegria tinha desaparecido e a vida passou a ser um mar de silêncios. Uns breves, outros longos, cresci entre as barreiras criadas por mim e o vazio da solidão.
Mas Ema não veio sozinha. Trouxe consigo um rapaz, provavelmente da minha idade, que manteve as mãos nos bolsos durante toda a sua apresentação. A sua postura era considerada um insulto, mas ele não parecia importar-se com isso. Vi o ar do meu pai e sorri discretamente. Aquele rapaz era exactamente tudo o que ele evitava. Não se importava com a etiqueta, nem com os bons modos perante desconhecidos, tinha simplesmente as atitudes que desejava sem dar explicações a ninguém.
« - Este é o Dante, o meu filho».
Ele retirou as mãos dos bolsos, fazendo uma pequena vénia ao meu pai. De certeza que Ema o tinha obrigado a ser cordial pelo menos naquele momento.
« - Esta é a minha filha, Leonor».
Ele olhou-me de soslaio, o suficiente para sentir o coração despoletar do peito sem qualquer motivo aparente. Inclinei a cabeça em sinal de reconhecimento e esperei que a conversa continuasse. De alguma maneira sentia que Ema não era uma pessoa de confiança, os seus olhos traíam-na e isso fazia-me sentir desconfortável.
« - Então tu é que és a filha de Afonso. Ouvi falar muito de ti... » - disse, mostrando um dos seus sorrisos.
« - Eu nunca ouvi falar de si » - respondi.
« - Leonor! » - a voz severa do meu pai sobrepôs-se ao riso abafado de Dante.
« - Não faz mal, eu compreendo. Ela é muito parecida contigo, Afonso » .
« - Eu sou parecida com a minha mãe » - voltei a responder. Não conseguia controlar a agressividade cada vez que Ema tentava aproveitar-se de mim para cair em graça.
« - Rájia, leva a Leonor para o seu quarto. Ela que se prepare para o jantar ».
« - Eu sei ir para o meu quarto sozinha ».
Dizem que as crianças não têm consciência suficiente para agir de acordo com a sua vontade mas isso não é verdade. No meu caso não. Eu não queria pensar nisso, a minha mente vagueava noutras direcções mas acabava sempre por voltar ao mesmo assunto. Eu não queria aceitar uma realidade que me parecia um pesadelo. Não podia simplesmente morder o lábio de raiva e baixar a cabeça em concordância. Onde estava o meu orgulho? A minha opinião perante algo que me afectaria de forma tão profunda?
« - O jantar está delicioso. Quem o preparou, é de facto uma cozinheira excepcional ».
« - E que tal convidá-la a sentar-se connosco? Não acha que merece? » - tentei manter um tom calmo e pausado, nada que desse a entender que a provocava.
« - Mas é claro que sim! Excelente ideia, querida! »
Nada a atingia. O meu pai começava a olhar-me reprovadoramente enquanto que Ema caía nas suas boas graças. Quando tive licença para sair da mesa, sentei-me na varanda, sentindo o ar fresco bater-me na cara. Nem mesmo aquela paisagem conseguia acalmar todos os sentimentos que fervilhavam interiormente.
« - Se queres prejudicar a minha mãe, estás a fazer tudo mal ».
Era a voz de Dante. Ao virar-me para trás, observei a sua figura junto à porta. Mantinha as mãos nos bolsos, assumindo uma vez mais a postura descontraída.
« - Eu não quero prejudicar ninguém » .
« - Realmente convidar a empregada para jantar com os donos da casa é uma coisa extraordinariamente normal. Por favor, é mais que óbvio que estás a tentar atacá-la ».
« - Não tenho jeito para intrigas » .
« - Falta-te prática. Mas vou dar-te um conselho: não é assim que vais derrotar a minha mãe. Antes de dares um passo, ela já está dois à tua frente. A da cozinheira foi bem pensada, mas não o suficiente para ser considerada uma armadilha » .
« - E o que é que tu tens a ganhar com isso? Ema é tua mãe ».
« - Isso não interessa. Eu sei o que estás a sentir, ou pelo menos penso que sei. Eu posso ajudar-te, se estiveres mesmo disposta a ter aulas de intriga ».
Observei as estrelas. Se a minha mãe estivesse ali comigo, a vida seria muito mais fácil. Tinha saudades do seu tom calmo e gentil enquanto toda a gente perdia a paciência, da sua personalidade forte que nunca ninguém soube domar. Podia ser parecida com ela, mas não era como ela.
« - Eu quero aquela mulher fora desta casa. E faço o que for preciso para atingir esse objectivo» .

(Viajante Solitária)

sábado, 21 de março de 2009

Memórias - cap.1

“Aqueles tempos foram difíceis. As mães corriam para abraçar os seus filhos e os filhos para salvarem as suas mães. Recordo-me das casas destruídas. Talvez por que numa delas chorava uma criança, embrulhada num cobertor, alheia a tudo o que se passava. Alheia não, o seu choro era incessante. Os soldados não deram descanso à cidade durante uma semana. Mataram, saquearam, humilharam os mais velhos obrigando-os a mendigar pelas ruas. Às mulheres, obrigaram-nas a prostituirem-se e muitas delas foram violadas e deixadas a um canto, como um objecto que já não serve para nada.
Tive sorte. O meu pai era comandante das tropas e nada me podia acontecer. Vivia feliz no meu conto de fadas, enquanto toda a população lutava pela sobrevivência. O meu pai nunca foi carinhoso, nem afável ou simpático, limitava-se a ser conveniente em cada situação. A minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Um acidente de viação deixou-a em estado crítico e morreu dois dias depois. Recordo-me que gostava de amoras e o seu cabelo cheirava a pêssego. Os seus olhos eram inocentes e via neles uma bondade rara. Olhava-me de forma protectora, nunca me perdendo de vista. Ensinou-me as primeiras palavras, a primeira canção, o meu primeiro sorriso foi para ela. Ao contrário do meu pai, ela não tinha medo de mostrar os seus sentimentos. Chamava-se Safira, uma verdadeira pedra preciosa.
A casa tinha muitas empregadas. Uma delas, Rájia, tinha uma atenção especial para comigo. Depois de perder a minha mãe, a figura feminina que me ajeitava os lençóis e por vezes me contava uma história passou a ser uma desconhecida. Chorei em silêncio, tendo como testemunha a almofada que amparou todas as lágrimas derramadas. Naquela altura perguntei-me por que Deus tinha levado a minha mãe. É claro que não obtive resposta, ainda não compreendia como estava a ser egoísta...
Os soldados entravam e saíam de casa, especialmente ao cair da noite. Ouvia as suas botas a pisarem o soalho e os passos rápidos e sincronizados, tal como uma marcha. Nessas alturas o meu pai mandava-me ficar no quarto. Nunca senti curiosidade em saber do que falavam, as conversas dos adultos eram demasiado aborrecidas. Rájia ficava comigo até ter ordens para descer. Não passava de uma menina, uma filha de empregada que não tinha outro destino sem ser seguir a profissão da mãe. Olhava para a lua com um brilho estranho. Parecia fascinada, quase como hipnotizada. Perguntei-lhe por que motivo o fazia, mas nunca obtive resposta.
Uma vez, provavelmente já teria os meus doze anos, encontrei Rájia no celeiro. Ao dirigir-me para casa, ouvi uns barulhos estranhos e resolvi ver o que se passava. Confesso que nos primeiros segundos não pensei em nada. Uma criança não tem consciência, pelo menos eu não tinha, do que se estava a passar naquele momento. As suas costas estavam nuas, envolvidas por braços fortes e musculados que não lhe pertenciam. A um canto, encontravam-se as roupas. Devo ter feito barulho pois Rájia apercebeu-se de uma presença e correu a vestir-se. Levou-me para fora do celeiro com uma rapidez quase alucinante, deixando para trás o homem de braços fortes e musculados.
« - Por favor menina, não diga nada a ninguém.Eu não posso ser despedida, a cidade está a passar por uma fase difícil».
Julguei que ia chorar. Mas como podia falar daquilo a alguém se não sabia o que tinha visto?
« - É assim tão mau? Estava a cometer algum crime?»
« - Se o amor for um pecado, não passo de uma pecadora».
As suas palavras permanceram na minha cabeça durante muito tempo. Nunca ninguém me tinha falado sobre amor, nem mesmo nos livros da escola. A minha mãe não teve oportunidade de me ensinar o quanto essa palavra era importante. Tenho a certeza que se estivesse viva naquela altura, explicar-me-ia de forma a que entendesse.

(Viajante Solitária)

quarta-feira, 18 de março de 2009

Memórias a preto e branco

Um tempo, um espaço
Um caminho e um atalho,
Perco as forças
Dentro de mim.

Não há chama, nem clarão,
O sol já se foi,
Os teus olhos, no meu rosto,
Lembram-me de não ter a noção.

De que vale ser maior,
De que vale não saber,
Se o que dói me faz melhor,
Mas a dor faz-me sofrer.

Não quero ouvir o som da tua voz,
Quando eu quis tu não estavas,
E no fundo sei que gritavas,
Mas eu não consegui ouvir.

E neste espaço, neste tempo,
Não há paz, neste momento,
Reza a lenda que um dia o amor existiu.
E agora parte só,
Nesta demanda...Estou cansada e frustrada...
As memórias que o passado não esqueceu.

(Viajante Solitária)

sexta-feira, 13 de março de 2009

Trova do Vento que passa - Manuel Alegre

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do m eu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi meu poema na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(Portugal à flor das águas)
vi minha trova florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale da pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria Florinda.

E a noite cresce por dentro
Dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

domingo, 8 de março de 2009

Dia da Mulher


Feliz Dia da Mulher! Sejam felizes hoje. E sempre.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Nada existe sem razão


Nada existe sem razão. Mas porque razão me sinto sem razões para explicar o nada? Será a razão uma parte de mim, daquilo que o nada representa e que essa mesma razão que há em mim teima em não entender? Ou será a razão uma justificação do nada, um simples motivo para aquilo que sinto se transformar no nada e as minhas acções nas razões?

Se nada existe sem razão... Então porque me questiono sem saber o motivo?