sábado, 21 de março de 2009

Memórias - cap.1

“Aqueles tempos foram difíceis. As mães corriam para abraçar os seus filhos e os filhos para salvarem as suas mães. Recordo-me das casas destruídas. Talvez por que numa delas chorava uma criança, embrulhada num cobertor, alheia a tudo o que se passava. Alheia não, o seu choro era incessante. Os soldados não deram descanso à cidade durante uma semana. Mataram, saquearam, humilharam os mais velhos obrigando-os a mendigar pelas ruas. Às mulheres, obrigaram-nas a prostituirem-se e muitas delas foram violadas e deixadas a um canto, como um objecto que já não serve para nada.
Tive sorte. O meu pai era comandante das tropas e nada me podia acontecer. Vivia feliz no meu conto de fadas, enquanto toda a população lutava pela sobrevivência. O meu pai nunca foi carinhoso, nem afável ou simpático, limitava-se a ser conveniente em cada situação. A minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Um acidente de viação deixou-a em estado crítico e morreu dois dias depois. Recordo-me que gostava de amoras e o seu cabelo cheirava a pêssego. Os seus olhos eram inocentes e via neles uma bondade rara. Olhava-me de forma protectora, nunca me perdendo de vista. Ensinou-me as primeiras palavras, a primeira canção, o meu primeiro sorriso foi para ela. Ao contrário do meu pai, ela não tinha medo de mostrar os seus sentimentos. Chamava-se Safira, uma verdadeira pedra preciosa.
A casa tinha muitas empregadas. Uma delas, Rájia, tinha uma atenção especial para comigo. Depois de perder a minha mãe, a figura feminina que me ajeitava os lençóis e por vezes me contava uma história passou a ser uma desconhecida. Chorei em silêncio, tendo como testemunha a almofada que amparou todas as lágrimas derramadas. Naquela altura perguntei-me por que Deus tinha levado a minha mãe. É claro que não obtive resposta, ainda não compreendia como estava a ser egoísta...
Os soldados entravam e saíam de casa, especialmente ao cair da noite. Ouvia as suas botas a pisarem o soalho e os passos rápidos e sincronizados, tal como uma marcha. Nessas alturas o meu pai mandava-me ficar no quarto. Nunca senti curiosidade em saber do que falavam, as conversas dos adultos eram demasiado aborrecidas. Rájia ficava comigo até ter ordens para descer. Não passava de uma menina, uma filha de empregada que não tinha outro destino sem ser seguir a profissão da mãe. Olhava para a lua com um brilho estranho. Parecia fascinada, quase como hipnotizada. Perguntei-lhe por que motivo o fazia, mas nunca obtive resposta.
Uma vez, provavelmente já teria os meus doze anos, encontrei Rájia no celeiro. Ao dirigir-me para casa, ouvi uns barulhos estranhos e resolvi ver o que se passava. Confesso que nos primeiros segundos não pensei em nada. Uma criança não tem consciência, pelo menos eu não tinha, do que se estava a passar naquele momento. As suas costas estavam nuas, envolvidas por braços fortes e musculados que não lhe pertenciam. A um canto, encontravam-se as roupas. Devo ter feito barulho pois Rájia apercebeu-se de uma presença e correu a vestir-se. Levou-me para fora do celeiro com uma rapidez quase alucinante, deixando para trás o homem de braços fortes e musculados.
« - Por favor menina, não diga nada a ninguém.Eu não posso ser despedida, a cidade está a passar por uma fase difícil».
Julguei que ia chorar. Mas como podia falar daquilo a alguém se não sabia o que tinha visto?
« - É assim tão mau? Estava a cometer algum crime?»
« - Se o amor for um pecado, não passo de uma pecadora».
As suas palavras permanceram na minha cabeça durante muito tempo. Nunca ninguém me tinha falado sobre amor, nem mesmo nos livros da escola. A minha mãe não teve oportunidade de me ensinar o quanto essa palavra era importante. Tenho a certeza que se estivesse viva naquela altura, explicar-me-ia de forma a que entendesse.

(Viajante Solitária)

6 comentários:

Anónimo disse...

Comecei a ler-te.Lindooo.
Tb.eu acho graça e orgulho-me da mistura de raças!
As tuas tb.são giras!
Beijoo.
isa.

Tiago Mendes disse...

Deixa-me só dizer-te uma coisa: estou cheio de trabalhos e testes e apresentações. Mas hei-de ler isto brevemente.

Tem o mesmo nome de uma coisa que eu cá sei. Memórias.

Tiago

Anjo De Cor disse...

Excelente, escreves muito bem ;)
Adorei a tua anedota da longa vida, hehehee ;)
Bjs e bom domingo ;)

☆Lu Cavichioli disse...

Muito bom Patrícia! Vou acompanhar estas memória.
Tua escrita é muito interessante prendendo a atenção. Parabéns viu? Esse é um dos segredos de um bom escritor.

Estou ansiosa pelo capítulo 2.
Bjkas querida!

Marta Vinhais disse...

Interessante, com o ritmo certo para manter a atenção do leitor...
Memórias - às vezes tudo o que nos resta...
Gostei muito..
Obrigada pela visita...
Beijos e abraços
Marta

Tiago Mendes disse...

Lindo, principalmente a última parte. Continua *

Tiago

PS: Não te esqueças de instalar o google talk!